Kurt Kraut

batendo tambor com o Ubuntu

Socializando o novo usuário

A fila é uma instituição brasileira. A qualquer lugar que se vá, corremos o risco de sermos enfileirados. Seja pela má qualidade dos serviços (públicos e privados) prestados, seja pela aglomeração das metrópoles ou pelas simples incompetência de quem está do outro lado do balcão, a única certeza é que teremos fila.

Não precisa de pedido, placa ou lei: a fila se formará sozinha. Mas como isso entrou em nosso inconsciente ? Como diria Buarque: pela educação.

Existem duas formas básicas de educar: a formal e a informal. A formal é a mais conhecida, se realiza de forma intencional e orientada. Ocorre quando um professor ensina uma matéria ou uma mãe ensina ao filho pela primeira vez a usar o microondas. São instruções passadas de forma clara e objetiva. Já a informal se dá quase que por acidente, sem intenção. Ela ocorre pelo exemplo.

Qualquer criança que acompanha os pais cotidianamente verá várias vezes filas se formarem e permanecerá nelas, em seu lugar até chegar sua vez. Quando os pais respeitam filas e levam seus filhos a elas, sem dizer qualquer palavra, passam uma forte mensagem sobre como nossa sociedade funciona e sobre como devemos nos portar em situações como aquela. E na primeira situação que a criança sozinha se ver aglomerada, irá instintivamente enfileirar-se como aprendeu informalmente.

Nossa comunidade é ineficaz em educar nessas duas formas. Formalmente, faltam documentos wikis, vídeos e podcasts sobre os valores de nossa comunidade. Sobre que liberdade é essa do ‘Software Livre’ e que comportamento se deve ter dentro da comunidade.

Quem vem do Software Proprietário tem uma série de hábitos e valores que precisam ser perdidos. Eles costumeiramente se enxergam como usuários isolados, se relacionam no máximo com a empresa que desenvolve o software e não compartilham o conhecimento. Situação diametralmente oposta a de quem usa Software Livre, que mais que um usuário, é membro de uma comunidade, se relaciona com os demais e compartilha conhecimento.

Para se relacionar com outros membros da comunidade, para socializar, é necessário uma etiqueta básica. Pune-se com rigor quem se desvia dela, assim como furar fila pode virar caso de polícia. Mas pouco se esclarece sobre o ethos e a etiqueta de nossa comunidade. Precisamos escancarar que aqui não são bem-vindos palavrões, ofensas, flame wars etc, que sempre se deve dizer a fonte e dar os devidos créditos dos materiais, usar por favor/obrigado/de nada e por aí vai. Assim nosso novo linuxer terá trânsito livre em IRC, fórums, wikis etc sem quaisquer transtornos.

Agora quanto a educação informal, temos que nos policiar. O Yuri Malheiros deu no planeta.gnulinuxbrasil.org a excelente dica do Scribes, um editor de texto para programação. Mas os mantenedores desse software fizeram uma apresentação em flash do software. Ou, por exemplo, muitos podcasts por aí sobre Software Livre que são distribuídos apenas em mp3. Não teria aí uma incoerência ? Usar o SL para falar de SL é um reforço a sua ideologia e a clara demonstração que ele atende as exigências modernas da computação. Nos falta também uma maior paciência e benevolência com os usuários que requerem suporte. Já passou da hora de abolirmos o RTFM.

Quando a educação formal e informal falham os resultados são desastrosos. Me dá asco só de lembrar de um episódio ocorrido no #ubuntu-br há algumas madrugadas atrás. Um rapaz engajado com o Ubuntu dizia que, pelo fato de seu trabalho junto a distribuição ser voluntário, ele era isento de qualquer responsabilidade ou compromisso com qualidade, de que ele faria o que quisesse quando desse na telha e ai de quem discordasse. Essa confusão dele entre ‘Software Livre’ e ‘Software de Libertinagem‘ é uma clara demonstração que houve uma falha na transmissão de valores.

Fico imaginando o que seria de nós se voluntários em hospitais, orfanatos e asilos pensassem assim. Mais que uma falha na passagem de valores de nossa comunidade para esse rapaz, é uma falha de caráter. Pelo menos entendo que é inseparável em mim a vontade de fazer as coisas bem feitas, de dar o melhor de mim pois as pessoas o merecem e mereço receber de volta o melhor delas. Esse rapaz não é caso isolado… na comunidade do Ubuntu Brasil tem sido recorrente a interpretação que o engajamento com Software Livre é fazer ‘o que quiser, se quiser, quando quiser e da forma que achar melhor‘.

Não basta abrirmos uma porta para que entrem no Software Livre. Temos que dar a cada um um lugar a mesa e munir eles da postura e etiqueta correta para que se sirvam e nos sirvam, mantendo a sustentabilidade ecológica de nossa comunidade.

October 15, 2006 - Posted by | Planetas

12 Comments »

  1. ‘o que quiser, se quiser, quando quiser e da forma que achar melhor‘.

    Infelizmente não é só no software livre que se encontra brasileiros com este tipo de pensamento.

    Belo post. 🙂

    Comment by thebluesgnr | October 16, 2006 | Reply

  2. Salve!

    Na essência do seu manifesto, eu compreendo e apoio. Há, porém, algumas afirmações altamente questionáveis no texto que podem, no mínimo, levar a conclusões equivocadas. Para não me alongar demais, vou apenas citar alguns pontos que merecem, ao meu ver, mais reflexão (por todos nós) e as minhas respectivas considerações:

    1 – usuário de SL é *sempre* mais do que usuário, ele é membro de uma comunidade.

    Seria ótimo, mas isso não é verdadeiro. *Nada* obriga qualquer usuário de SL a ser membro de uma comunidade ou a ser algo mais do que um mero usuário. Isso é uma opção altamente desejável, e só. Por outro lado, cada simples adoção de um SL em detrimento de um SP é, efetivamente, uma enorme contribuição para a causa do SL.

    2 – Software de “libertinagem”.

    Por motivos históricos, a situação é bem essa que o rapaz colocou, mesmo. Tanto é, que a própria GNU/GPL deixa bem claro que o autor/distribuidor não tem qualquer compromisso com a qualidade do software. Isso não significa “libertinagem”, e muito menos que a coisa não vai funcionar. Só significa que a decisão de compartilhar uma solução foi voluntária, mas limitada ao objeto compartilhado.

    3 – Voluntários de hospitais… etc.

    tenho visto muitas vezes esse tipo de analogia, mas elas são argumentos geralmente falaciosos. As comunidades são diferentes, os interesses e motivações também… Do mesmo modo as regras que cada uma estabelece para si mesma. O que eu vejo neste seu exemplo, é uma indicação clara da diferença entre as comunidades já amadurecidas (capazes de lidar com todos esses problemas) e aquelas que ainda estão buscando os seus próprios caminhos.

    Pena que este seja apenas um espaço para comentários, pois este é um debate muito interessante e, ao mesmo tempo, uma conversa que vem sendo adiada há muito tempo.

    Abraços e, mais uma vez, parabéns pelos seus artigos.

    Comment by GDA | October 16, 2006 | Reply

  3. Aloha GDA,

    Obrigado por comentar 😀 Por mais que as estatísticas dizem o contrário, artigos poucos comentados me dão a sensação de que foram lidos.

    Tambem vou te responder por partes

    1- ‘Poder pode mas não deve’

    Quando li seu comentário fiquei na dúvida se eu tinha usado o termo ‘sempre’ para se referir a conduta do usuário de SL como membro de uma comunidade. Mas vi que não usei.

    Queria frisar o que disse no texto: o hábito do usuário do SP se ficar isolado e não trocar informações, não conviver em comunidade, é um hábito que precisa ser perdido. Não entendo isso como obrigação. Apenas que é um valor que precisa ser transmitido, a de que somos uma comunidade e que SL é um movimento social, não apenas uma licença de software.Portanto, pode ficar na posição de lonewolf ? Poder pode, mas não deve.

    2- Até no Software Proprietário não existem garantias que o software vá funcionar e o autor/empresa não é responsável por eventuais danos. Mas você não sacou o que quis dizer.

    Como nossas atividades são colaborativas, várias pessoas selecionam tarefas a cumprir dentro de um grande projeto. Algumas atividades são essenciais para as demais. O que relato é que tem gente trazendo para si essas responsabilidades e não seguindo prazo, calendário e as metas já aceitas previamente. Isso acaba causando não só atrasos em projetos como sabota todo o trabalho de diversas pessoas que foram assíduas e compromissadas com a qualidade do trabalho que realizam. Porque entendem que devem ‘fazer quando quiser‘. E quando entregam o trabalho que se comprometeram a fazer, entragam-o fora do padrão, pois, ‘fazem da forma que quiser‘. Como disse no texto, é praticamente uma falha de caráter.
    3- Voluntariado

    O que critico é o fato de um trabalho ser voluntário ser considerado sinônimo de ‘mal feito’, sem compromisso com a qualidade, sem a necessidade de ser bom. Caridade sim é dar sobras, dar esmolas. Voluntariado é um engajamento sério. O Software Livre depende desses voluntários tão quanto os velinhos do asilo.

    Enfim, por enquanto é isso. Obrigado pelos elogios e fico feliz de tê-lo como leitor.

    Comment by KurtKraut | October 16, 2006 | Reply

  4. […] O que diferencia a comunidade baseada na reciprocidade antecipada comparada a uma sociedade normal convencional, hobbesiana, é que na anterior os membros trabalham pelo bem coletivo por vontade própria, ao perceberem que seu trabalho traz benefícios coletivos e, principalmente, para si mesmos. Nos outros casos, o “trabalho coletivo” vem da coerção – seja coletiva ou autoritária. O que deve marcar o passo dessas contribuições é a vontade e a disponibilidade do colaborador – e não a persuasão coletiva, a busca por status, ou ainda por “karma”. As pessoas devem contribuir apenas com o que quiserem, se assim preferirem. Isso não é libertinagem. É liberdade, da boa e velha. O combustível da nossa comunidade é implícito nos versos da free software song: “Join us now and share the software / You’ll be free hackers” (Junte-se a nós e compartilhe o software / Vocês serão hackers livres). Junte-se a nós e compartilhe. Esse é o mantra do auto-benefício-coletivizado. […]

    Pingback by cetico.org » Blog Archive » As motivações do trabalho comunitário | October 17, 2006 | Reply

  5. Salve Kurt,

    Estou sumido mas quando posso acompanho o planeta. Passei aqui para dizer que na minha humilde opnião melhores post sobre SL são os seus. E por um simples motivo eles não são técnicos. A sua preocupação quanto a pensar coletivamente é a mema que a minha. E sonho em um futuro que SL não será coisa somente de tecs e nerds. A participação ínfíma das mulheres comprova isso, mesmo com participaçoes isoladas.

    Acredito que temos que ter ferramentas para produção de conhecimento mais “user friendly” pois ainda estão restritas para cabeções. A exemplo de wiki que tentei implementar na escola pública onde trabalho mas a maioria dos professores não conseguiram usar a ferramenta.

    Penso que o SL deve dar mais um passo evolutivo, para que se desenvolvam ferramentas para pessoas comuns poderem usufruir da cultura coletiva, e é por isso que adminiro tanto o Ubuntu.

    Fica aqui minha pequena reflexão.
    Abraços

    Comment by Krysamon | October 17, 2006 | Reply

  6. […] Desde que comecei a me envolver com a comunidade do Software Livre, fiquei encantado com os relacionamentos dentro da comunidade, a a metodologia de trabalho e os princípios que norteiam todas as iniciativas. Sempre me impressionou o fato de sempre ver valores como reciprocidade, cortesia, responsabilidade, solidariedade, honestidade, colaboração e tantos outros, dentro das comunidades ligadas ao desenvolvimento do Software Livre. E o que mais me intrigava é entender como esses princípios foram se tornando como padrões de comportamento, sem que houvesse nenhuma obrigação disso e sem que houvesse qualquer tipo de documento formal explicando todas as regras de conduta e obrigando os usuários a seguí-la. A comunidade é livre. Qualquer pessoa pode participar. E a maioria das pessoas que chegavam, iam se acostumando e entendo esses princípios. Mas, sempre tive uma preocupação. Com a popularização do Software Livre e com um número cada vez maior de pessoas utilizando e desenvolvendo, será que conseguiremos manter os mesmos princípios que conquistamos dentro da comunidade? Isso é um assunto muito sério. Hoje, eu li dois textos muito interessantes falando sobre isso. O primeiro foi “As motivações do trabalho comunitário”, escrito por Yves Junqueira. O outro é “Socializando o novo usuário”, de KurtKraut. Leiam e reflitam um pouco. […]

    Pingback by Princípios e valores « Sudoeste Livre - Ba | October 17, 2006 | Reply

  7. […] Esse vai ser o meu primeiro comentário, nesse blog, sobre um assunto ligado à computação. Pretendo escrever mais sobre isso. Desde que comecei a me envolver com a comunidade do Software Livre, fiquei encantado com os relacionamentos dentro da comunidade, a metodologia de trabalho e os princípios que norteiam todas as iniciativas. Sempre me impressionou o fato de sempre ver valores como reciprocidade, cortesia, responsabilidade, solidariedade, honestidade, colaboração e tantos outros, dentro das comunidades ligadas ao desenvolvimento do Software Livre. E o que mais me intrigava era entender como esses princípios foram se tornando como padrões de comportamento, sem que houvesse nenhuma obrigação disso e sem que houvesse qualquer tipo de documento formal explicando todas as regras de conduta e obrigando os usuários a seguí-la. A comunidade é livre. Qualquer pessoa pode participar. E a maioria das pessoas que chegavam, iam se acostumando e entendo esses princípios. Mas, sempre tive uma preocupação. Com a popularização do Software Livre e com um número cada vez maior de pessoas utilizando e desenvolvendo, será que conseguiremos manter os mesmos princípios que conquistamos dentro da comunidade? Isso é um assunto muito sério. Hoje, eu li dois textos muito interessantes falando sobre isso. O primeiro foi “As motivações do trabalho comunitário”, escrito por Yves Junqueira. O outro é “Socializando o novo usuário”, de KurtKraut. Leiam e reflitam um pouco. […]

    Pingback by Princípios e valores no Software Livre « Stenio Ferraz | October 17, 2006 | Reply

  8. 😀
    Legal =D

    tuddo é uma questão de cultura =x

    Comment by Daniel | October 19, 2006 | Reply

  9. Yo! Kurt..

    Mais uma vez um excelente artigo, discordando um pouco do GDA, acredito sim quando diz que ao optar por um SL o usuário torna-se parte de uma comunidade. Usando um SP, esse aponta um problema, o usuário vai discutir com um amigo. “Nossa cara.. meu software ta com esse pau”, e o amigo diz que o dele também, “é assim mesmo, é bug do programa!”. Agora imagine se for um SL? Ele pode comentar com um amigo que também use o SL e o amigo falar, “Nossa cara.. o meu tinha dado esse pau também mas corrigi com uma dica da galera da comunidade que usa, olha lá pra você corrigir também”.

    Acho que essa filosofia de colaboração impele quem usa SL a também querer participar do processo, e não ser apenas levado por essa onda. Realmente essa herança conformista que o SP nos deixa precisa ser perdida. Agora como em qualquer comunidade, seja ela voltada para qualquer fim, sempre existirão os que não absorvem realmente as idéias da comu e proliferam interpretações erradas. Isso sempre vai existir.

    Otimo post como sempre Kurt. Parabéns.

    Comment by Pulim Batata | October 26, 2006 | Reply

  10. Solicito informações sobre software para gestão dos serviços de assistencia aos idosos (asilo). Estamos querendo implantar um sistema para melhorar os controles bem como tornar eficientes e informações transparente.
    grato Armando Pereira de Lima – Presidente

    Comment by Asilo São José | June 7, 2007 | Reply

  11. Olá, primeiramente gostaria de deixar meus parabéns pelo texto e pela iniciativa de dar um puxão de orelha nesse tipo de usuário que tem a excelente oportunidade de utilizar SL e pensa que pode agir como bem entender.

    Isso além de uma falta de respeito com os integrantes da comunidade é também uma demonstração clara da falta total de conhecimento que impera em alguns novatos os quais apenas utilizam linux para fugir do Windows.

    O linux jamais existiria sem união, respeito e principalmente força de vontade.
    Em minha humilde opinião essas atitudes as quais você citou são provenientes de usuários acostumados ao Windows e à facilidade de obter tudo da forma mais simples (pirataria).

    Posso estar sendo injusto, mas acredito nessa hipótese.

    Comment by João Leme | June 11, 2007 | Reply

  12. Thanks to Oprah, Obama camp claims biggest crowd yet

    Comment by vgryzhijchertxh | February 17, 2008 | Reply


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